Montanha dentro do Lago

A felicidade íntima de uma mamífera. Cornucópia é o lugar do meu amor. Será que é tão difícil não tentar impressionar. Tentar não impressionar.

Basta lembrar que meus desejos que parecem mais urgentes são, olhando bem agora que eu sei das 10 mil coisas, só meu desejo alegre no coração aberto, o Lago onde bate o vento, ventos enviesados quando você, Montanha, se aproxima. Quanta beleza. Montanha não porque é grande, não porque não age. Porque vem todo.

Eu senti uma avalanche de vidas correndo, trombando às minhas costas. Aprendi a deixar virem esses dominós de neve. Não tropeço pra me atropelarem, andei respirando, deixando o coração gelar de fresco ar.

Esperei bem. Afinal, essa alegria de antes de ver não é tão rara nem frágil a ponto de ter que ser atuada às pressas, afoitamente. Não. Pauso, pausei dentro do peito, pausei no galope, pausei as gotas de horas e segundos.

Você chegou e eu parecia muito que ia pra uma espécie de paisagem paradisíaca, templo, altar, bom de sentir, câmera exposta, vida explícita em seus mecanismos lúdicos. Você tinha estacionado e por isso veio. Rente à calçada, é exatamente isso o que fazemos, isso que é nosso casamento.

É um não deixar o outro estacionar. É isso que a gente faz um com o outro. Antes daquele dia da borboposa amarelo-receio, era sutil, empurrãozinho seu em mim, eu nas suas costas. Aí depois daquele dia em que o tempo parou, centrifugado, não ficou mais sutil. Ficou estrondoso, cada chacoalhão, um terremoto. Depois daquele encontro, tudo veio empurrando as caixas de pandora do nosso coração. Pixies, guerras, percussões, muitos plurais, filhos, casamentos, carros, capitais, coreias, tudo isso como expressão do indizível não dito pelo espelho. Experimentamos repetidas vezes formas de expressar e ter experiências desapegadas. E a cada vez, comentávamos. Ok foi perfeito. Perfeito de novo. Perfeito sempre.

Mas o amor é imperfeito. Cornucópia é o lugar do meu amor. Onde quer que você esteja, o que quer que você acabe fazendo, este é o voto, a cerimônia mais sincera, visceral, mamífera. Eu te tenho, eu te abraço, eu te recebo, montanha no lago, mesmo que essa beleza eu veja sozinha, quietinha, me testemunhando na rodovia escura, fugindo de uma onda que já arrebentou há séculos.

Só parei pra tirar uma cartolina da bolsa. Escrevi grande EU ESTOU BEM. JURO JURO. Eu não sei que cara, que boca se faz, pra sociedade, pros carros na rodovia, pra expressar de imediato que se está bem. Sorriso é difícil improvisar. Sai torto, sai maquiavélico, doente. Eu queria que você voltasse, me resgatasse, me abraçasse, me recebesse, montanha com caverna para revelar o lago. Mas você me tem quando eu acordo e sorrio torto mesmo, estranho mesmo. Você me tem quando me pergunta a pergunta certa antes de se mandar. “Você quer pedir alguma coisa?” Percebe como a pergunta é amor é ter, receber, abraçar, o próprio resgate que me resgatou na beira da estrada, ao avesso, por isso infinitamente maior.

“Você sabe, você percebe de alguma forma, não é possível, você tem quase 50 anos.” Essa foi a declaração de amor mais maluca e verdadeira. Tudo desavesso com a gente. O que está dentro está fora, sabe? Quando abandona, aí que ama demais. Quando não entende, aí que faz tudo tão claro de arder sem sol a noite que paralisou só porque nos encontramos na calçada. Como eu queria te encontrar na calçada sempre, eclipse todo dia, vagar de mãos dadas, essas mãos que são parte grande de um todo pequeno. E reverte.

Sempre reverte tudo com você. Vice-versa do tóxico, cruel, tão eu, tão “eu me engano”. Sempre destruindo meus castelos ingênuos por saber que eu não quero cultivar esses castelos. Levanta esse cartaz, caralho. Gente, eu estou com cara de desespero, chorando feito bebê abandonado, mas EU ESTOU BEM. JURO. Você não me deixa estacionar, seu chute me faz dar voltas em torno do planeta. Você me faz desfazer esse tempo mesquinho de relógio. Em outro texto eu tento contar os milagres, contar. Agora também sei que todas as coincidências entre nós podem ser resumidas com uma palavra, um instante de olhar, uma configuração de tripas que se sabem máquina do mamífero que criou a máquina à sua imagem e semelhança mecânica, organizada, narcísica.

Uma cornucópia de presentes, o presente que eu sempre pedi, desde o primeiro Natal iludido. O primeiro aniversário distraído. Eu pedi exatamente isso que você me dá. Esse milagre por todos os lados. Te ver, te sentir, te conhecer, morrer de saudade, morrer de raiva sem achar a porra do alvo dessa raiva. Com você a raiva vira mambo com babados fazendo baliza entre as peças de louça e as cuias laqueadas de uma cerimônia do chá. Eu quero ser simples, não sou simples. Me satisfaço em segredo em ser simples e ignoro que lhes pareça complexa. Sou básica explosão que só se dá diante de espectador.

Se alguém chegar e me vir assim agora, EU ESTOU BEM. E eu saber que estou bem resolve tudo. Tudo. Resolve tudo com você que não responde minhas mensagens. Tudo com você que está frágil e se preocupa comigo e com todos. Com você que é toda minha mamiferazinha, toda sentimentos de peixinhos pelo meu lago, fio de luz pisca-pisca do seu primeiro Natal. Debaixo da água, imagina. Imaginemos. Estamos bem.

Entendeu? O que você é pra mim? O que eu tento dizer quando viro metralhadora desvairada. Por que meus olhos viram lagos ao vento. Você sabe que a arte é a única forma de dizer esse tipo de coisa. Por isso nós inventamos. Variamos, fugimos, hesitamos, criamos aquilo que seja o que todo mundo não está fazendo e querendo e correndo atrás.

Abre esse presente: apego é medo de sentir, medo de perder. Vínculo é abrir o coração desse jeito aí que você abre o sorrisão.

Não consigo parar.

meu cachorro e notas subliminares

tenho sonhado frequentemente com cachorros de diferentes raças e não-raças.
em todos esses sonhos
o cachorro aparece como presença inequívoca, em parte como os cachorros se apresentam neste mundo: impossibilitados de serem corrompidos pela mente. e em parte seres de outro mundo, do mundo da ficção, da autocriação e auto-honra, da linguagem do Inconsciente (ou Portal Esquizo).

um cachorro é criado por mim e, no entanto, autônomo ao me amar incondicionalmente, e talvez mais significativo: assim fazendo, me faz entender por dentro o que é o amor.

sua garganta melhorou? começou a ler o livro que deixei sem você ver?

aceitação total acompanhada de discernimento, do saber + sentir = conhecer. um cachorro música que sempre que aparece, VEM. o que esses diferentes cães FAZEM nos sonhos? me abraçam com quatro patas possíveis, e do possível realizam o impossível. me olham, me percebem. constantemente fazem questão. da minha presença, do corpo que recebe, saboreia e se alegra no abraço.

minha vizinha grita na distância o mesmo grito harmônico que dei num dia passado, na rua. o cachorro se mistura a outros cães empolgados demais, barulhentos demais, gritaria de dias passados, e volta para me ver. VEM.

não desejo mais que isso. é total.
sou feliz porque o cachorro dos meus sonhos é real.

porque meu cão me visita em todo sonho que a ele se abre, não preciso ser atrevida além do que o momento pede, não me impaciento, não corro perigo. cão amuleto.

ele sabe. ele estava lá desde o meu início. física-ficticiamente presente ou inominável, anterior ao mundo verbal. cachorro cura.