Resenha – Mar de Viração, de Leandro Durazzo

Mar de Viração reúne três novelas, O Naufrágio do Aqueronte, Terra Húmyda e Santos’agrados.

Quero falar de três coisas. O que chamou minha atenção na leitura como um todo, as peculiaridades de cada novela e as reflexões que a leitura desencadeou.

  1. O que chamou minha atenção na leitura como um todo.


Meu primeiro foco é sempre na linguagem, seguido de perto da relação que posso estabelecer com as personagens e, em algum lugar constante, servindo mais de fundo que foco, que universo individual o autor apresenta.
Quando entrei no Mar de Viração, tinha pouca expectativa e quase nenhuma informação que situasse o autor, as histórias, o gênero e o universo. O que aconteceu foi que o primeiro parágrafo me fisgou. E finda a leitura do livro, digo que fisgou de modo definitivo.

“A última memória de terra tinha sido na franja do mar. Memória de areia. Margarida soluçava o vai e vem das ondas, olhando no rasinho os siris que se escondiam. E surgiam. E corriam pra se esconder de novo. Que nem ela. Que nem seus pais. Que nem.”

Aí a coisa já ficou séria. Todas as alternativas foram sendo ticadas. Ritmo. Afeto para as personagens. Movimentos trabalhados frase com frase, presença de surpresa, surpresa bem-vinda, morfema por morfema, sem descuido. Sem pretensão que me afastasse. Uma Margarida é isso, afinal. Beleza interna que quase não se distingue da externa.

Senti no corpo o movimento de uma memória. A contemplação da amplitude da terra e o mar juntos se aproximando da areia que é, para a minha memória, áspera, penetrante e morna. A minha memória é da areia nos pés, porque “Margarida soluçava o vai e vem das ondas”, não se separava delas. Esse início de novela diz sem dizer (o segredo da literatura) que é isso mesmo, que podemos soluçar a pulsação do mar. E os siris falam a Margarida, explicam muita coisa, unindo tudo. Memória que cura, embala.

Confesso que sinto alívio quando uma análise objetiva que me saia pode refletir minhas impressões pessoais de um texto. Não sei em que página descobri que era possível também perceber no corpo o que a corporificação das histórias trazia. Isso nas três novelas, em especial na segunda, Terra Húmyda, em que, pulo pra ela, o corpo está no centro como nosso aspecto mais misturado com a alma da natureza. Por todo lado, na segunda novela, a natureza enriquece o ser humano, que, diferente dela, não é ainda capaz de só ser. E já que essas personagens, como eu e você, estão sendo humanas, na narrativa da protagonista ora sobrenatural, ora mais concreta, impossível, a natureza nos salva, redime de toda vergonha, nos faz criativas de uma forma antes impensada, e é isso que eu chamo de arte.


No trecho a seguir, besouro, cigarra, fonemas, folhas tão múltiplas quanto as vejo todos os dias realizam sem muito esforço esse quadro em que as palavras alcançam uma simultaneidade que em geral não se compara com a da composição musical e a da sobreposição de manchas da aquarela.

“sabe não, principeza, sabe não que dizia a menina doida com ninho de andorinha no cabelo assanhado, cos besouro e co’as cigarra na cacunda. Teve uma das fidalga que disse assim Ai que imunda essa menina, tirem-na daqui ó meus lacaios, mas é tudo que sei dizer do que disseram de dizer dela, o resto foi tudo mei’ sem palavra, menina passava rápida que nem vento, deixava por trás só rastro de farfalha de folha verde folha seca caindo, menina parecia que parecia mesmo um ser desses antigo, sabe vossa principeza, já viu algum? Menina maluca parecia um pedaço de natureza.”

O que me faz pensar por que escolheram o trecho que está na quarta capa, se todos os outros trechos são mais intrigantes. O que me faz pensar também que me incomodo quando um autor homem consegue retratar bem mulheres e meninas. O que me faz pensar de novo nas minhas folhas, no meu ser antigo, no meu ser imundo e que não me identificaria tanto com uma personagem vinda de um autor homem se não fosse algo impossível de negar.

O que me deu uma encruzilhada aí de 3 O que me faz pensar para desenvolver agora. O primeiro pode deixar como está. O segundo pede só que eu pontue que alguns dos meus autores favoritos retratam mulheres de forma patética às vezes. E a grande prisão de nós mulheres se constrói por narrativas. Então eu leio esses retratos com dois pés atrás e o olho de canto, braços cruzados prontos pra dar as costas para mais um. Mas as minhas folhas estão lá e nem é só a primeira experiência dessa leitura que me redimiu de algum jeito. É hoje, tempos depois, que uma imundice minha qualquer que me disseram meio sem palavras ontem, é elevada a resgate e libertação no momento em que revejo o livro para escrever a resenha. Ecos inesgotáveis de criatividade gerados pelo texto. É isso que eu chamo de magia. O que me leva ao 3 de nem sei mais de quê, mas arremato: vindo de homem, tem que ser no mínimo algo impossível de negar.

O que me leva a mais uma coisa que me chamou a atenção na leitura como um todo – a constância, a consistência. A riqueza da linguagem se mantém, as personagens se mostram cada vez mais vulneráveis, saborosamente paradoxais. Nenhuma fica pra trás. Deu vontade de continuar.


2. As peculiaridades de cada novela

O Naufrágio do Aqueronte introduz, desenvolve, apresenta um enredo, uma motivação, e fecha o círculo no lugar mais profundo que a areia e os suspiros podem oferecer. Se dá liberdades de narrativas em sépia interrompidas por narrativas meio urbanas, quase pop. Talvez seja só Margarida uma alma antiga e numa releitura eu perceberia com mais clareza o efeito de sua presença não só nas pessoas como no grande movimento que carrega pessoas, navio, mar.

Terra Húmyda seria minha favorita das 3, se tivesse que escolher. Não tenho. Terra Húmyda introduz de supetão a relação entre Ana e seu Cristóvão, a qual já é um presente para a leitura, porque se trata de uma relação inusitada, sem nome, alegre, corajosa. Desinteressada num sentido, interessadíssima no outro.
O segundo arco dessa Terra acompanha a epopeia do Bardo, o Príncipe moço e da menina da citação acima, “Menina maluca parecia um pedaço de natureza”. As duas subestórias se complementam especialmente no que uma é metalinguagem da outra, um encantamento potencializa o outro. A história da menina árvore responde às perguntas da história da menina Ana. Há uma abundância de trechos bonitos, de arrepiar, páginas inteiras sublinhadas a lápis.

Santos’agrados ousa mais no formato, seguindo esse movimento experimental da primeira novela para a segunda. A segunda é mais livre do que a primeira em termos de estrutura narrativa, a terceira põe a leitura em lugar desconhecido. Mas entra bem, provavelmente porque, como as outras duas, deixa a forma responder às demandas da alma da história. Aqui, personagens arquetípicos de tão íntimos entram e saem para anunciar sabedorias cruas, rústicas, firmes como montanhas atacadas pelas intempéries da vida humana. Vale transcrever um dos trechos sublinhados para serem relidos. (Este, por acaso, mais vento e fogo que montanha, mas todos esses elementos naturais se sentem do início ao fim de Santos’agrados.)

“[…] depois de sair todo dia bem cedo a gente vai vendo que tem coisa mais bonita pralém das que chama atenção no grito. mesmo, eu te digo, tem coisa assim que vai na serenidade do orvalho, sabe?, o jardinzinho da entrada, o caminho todinho em que arrasto a barraca até a rua. Teve vez que abaixei pra olhar o caminho que as roda fazia, achei que tinha matado um sapinho mas tinha matado não, que foi só pedra. Mas daí baixei e fiquei percebendo […]”

3. As reflexões que a leitura desencadeou

Uma reflexão é aparentemente de ordem prática e é sobre ritmo de leitura. A extensão do texto e até mesmo o grau de complexidade ou simplicidade da narrativa não afetam mais o ritmo da leitura do que o envolvimento afetivo que a experiência da leitura desperta. No caso desta leitora, Mar de Viração pediu convívio e alargamento do tempo. Um texto cheio de ritmo e que, para o meu ato de abrir, ser tocada, sentir tensão criativa, sacrificar atenção e sonhar com as sensações, exigiu aproximações e renovação de percepções, novas paisagem em que aquelas atmosferas lidas podiam se deixar levar a viagens assim como eu prometia me deixar levar.
Não se apressa uma introdução ao amor. E, às vezes, um livro inteiro é uma sobreposição de começos, sejam eles representados por novas sinapses ou indicados pela apreciação de novos propósitos de vida.
O fim é claramente uma nova semente se formando no escuro. Não é só fim sem ser também o espelho da origem, da fonte de criação. Ela está em toda parte.

Outra reflexão é sobre a vivência do autor, e fui a Leandro perguntar, como uma pergunta necessária para completar a experiência da leitura, se ele conhecia em presença esses lugares, essas terras, cruezas sábias, ambientes de mitos penetrando convívios sociais anteriores a uma formalização das percepções imediatas, formalização que acaba pasteurizando as experiências, distanciando o perceber do expressar.

– Você tem vivência desses lugares?

Leandro Durazzo – quais lugares?

(suspeito que sim, mas quero saber)
– lugares (sinto que já estou escrevendo a resenha) de mato, terra, criança, caneca de metal esmaltado, poder desenhar o chão, de desenhar o dao, de velas, de capela, de sabedorias sem o empurra-empurra de vozes racionalistas

Leandro Durazzo – sim
eu ando por esses lugares

– Essa leitura – e eu cheguei a esse livro de jeito inesperado, na verdade outro nome para puramente intuitivo – me põe no meu lugar. O lugar da linguagem que brinca, e não brinca mais com o intuito de esconder a verdade interior. A minha é uma leitura afetada pela experiência de quem não estava satisfeita com as linguagens disponíveis para circular e penetrar o indizível.

Leandro Durazzo – é

acho mesmo que é isso
ou algo disso
o corpo do texto, o corpo do mundo
e o mundo bem maior.


Mar de Viração, de Leandro Durazzo, editora Moinhos 2018

Coisas na Calçada

coisas na calçada
expulsas?
solitárias?
vagando?
perambulando sem dinheiro, sem bateria, sem carregador
coisas na calçada
sentando pra chorar
por não suportar voltar pra casa
exagerada
um ramo grande em vez da folhinha solta
chamativa
pedindo pra ser acolhida por estranhos
prestativos
que te dizem pra não chorar e olhar para o problema
roer as cortinas que te afastam de você
roer e juntar tudo
coisas cansadas
carregando o coração do mundo