O que acontece dentro de mim

“Dragonfly out in the sun, you know what I mean, don’t you know?

Butterflies all havin’ fun, you know what I mean

Sleep in peace when day is done, that’s what I mean

And this old world is a new world

And a bold world, for me

Stars when you shine, you know how I feel

Scent of the pine, you know how I feel

Oh, freedom is mine

And I know how I feel”

Trecho da letra de Feeling Good, recriada e imortalizada nos meus tímpanos cansados pela rainha Nina Simone. Li em algum lugar que os compositores (originais) a fizeram para um musical, para a cena em que um jogador de xadrez negro está “Se Sentindo Bem” após derrotar adversários que o desprezavam.

E a voz de coração de Nina engrandece a canção, fazendo caber nela tudo que remeta a se livrar da necessidade de qualquer validação externa. (O jogador venceu, mas os adversários não ocupam mais sua mente, ele se sente bem, se sente “aroma de pinheiro”.)

A validação interna tampouco faz sentido, basta, como diz aquele verso “E eu sei como me sinto”. Não se trata de validar nada, mas de ser amiga da poesia, das “estrelas quando você brilha”. As “libélulas visíveis ao sol” não precisam do que estranhamente seria uma “autovalidação”, só se divertem como borboletas numa barriga que “dorme em paz quando o dia acaba”.

(Sim, é “um mundo novo e ousado”. Mas como diz aquela definição de ‘loucura’…)

Fotos da fotógrafa poeta Helyana Manso, da mostra de alunas da amada Villa Flamenca.

feliz que te faço ser meu amor

Eu entendi agora o que vc disse aquele dia há tanto tempo, na cama, no ano passado, num passado que nem existe mais, mas que é memória pontiaguda.

Não só isso. Do nada, percebi que por trás das suas palavras havia tanta sabedoria – sutil, ainda muito desvalorizada neste mundo de guerras e fome

Eu reagi mal, porém, contudo e com tudo

Olha, se vc respirar, nem reagi mal na verdade, embora o desfecho tenha sido triste, conflituoso,

(sofremos, uma dor tão difícil e penetrante)

Mas eu reagi até bem

O que houve foi o nosso velho amigo íntimo – sim, amigo – o mal-entendido

É amigo justamente porque me permite hoje ver de longe essa paisagem e sua beleza e profundidade, sem meu ego – outro amigo danado – no caminho

Não é porque uma escada me impede de passar por onde quero passar que uma escada é em si algo ruim (vista de outro ângulo, ela não me deixa passar, mas me faz subir)

Vc tinha total razão em me mostrar onde eu estava “errando” ali

Vc disse aquilo com sua agridoce e deliciosa combatividade carinhosa, sempre tão confundida com desrespeito. E fechou os olhos cansados

Me emociono

E não tenho vergonha disso

Não mais

E foi justamente minha lágrima, uma, tão invisível e inodora, o que seus olhos viram ao se abrirem

Viram esse sinal da visão que tenho de vc me vendo – voyeur, eu diria, só pra aliterar

Sua sabedoria chiaroscura, seu olhar de amor penetrante enquanto a boca solta bombas que me engatilham

Foi minha lágrima o que te doeu

Mas ela é pura e brota da beleza do nosso encontro

Vc tinha razão no que me disse, aquelas palavras espontâneas que minha mente leu como ofensa

E de lá pra cá eu já expliquei que 1 lágrima rolando para matar sedes é algo positivo

E que eu sou forte

Essa minha gota invisível para os outros mas não pra vc significa abertura, nenhuma mais escancarada que a vulnerabilidade

A confiança em vc, de poder deixar fluir minha doçura na sua presença

Sempre sabendo que sinais, ainda que importantes, se inodoros e calados, podem passar despercebidos

Por vc não passou

Porque vc me conhece

Por dentro

E o que importa hoje é que eu sei que vc disse algo sábio e delicado e especial – me revelou no seu laboratório analógico improvisado

De um jeito meio brusco – protegendo coisas ameaçadas de extinção – a gente tem as ferramentas que tem, pra que exigir mais?

E eu entendi

E aprendi

Tanto tempo depois

Está aqui

Acendendo meu entusiasmo constante pra seguir vivendo com doçura, entre belezas poluídas.

enfim o eme a erre

Quando vimos, estávamos dentro do sonho lúcido.

Dá pra saber que se está no sonho por variadas vias. Uma delas é notar que se está entendendo a fala de algum bicho ou quando o tempo não funciona. Acho que nós quatro ou, com certeza, dois de nós sentimos a densidade de sonho naquela experiência quando o táxi dobrou o caminho e apareceu o mar. [continua]

Montanha dentro do Lago

A felicidade íntima de uma mamífera. Cornucópia é o lugar do meu amor. Será que é tão difícil não tentar impressionar. Tentar não impressionar.

Basta lembrar que meus desejos que parecem mais urgentes são, olhando bem agora que eu sei das 10 mil coisas, só meu desejo alegre no coração aberto, o Lago onde bate o vento, ventos enviesados quando você, Montanha, se aproxima. Quanta beleza. Montanha não porque é grande, não porque não age. Porque vem todo.

Eu senti uma avalanche de vidas correndo, trombando às minhas costas. Aprendi a deixar virem esses dominós de neve. Não tropeço pra me atropelarem, andei respirando, deixando o coração gelar de fresco ar.

Esperei bem. Afinal, essa alegria de antes de ver não é tão rara nem frágil a ponto de ter que ser atuada às pressas, afoitamente. Não. Pauso, pausei dentro do peito, pausei no galope, pausei as gotas de horas e segundos.

Você chegou e eu parecia muito que ia pra uma espécie de paisagem paradisíaca, templo, altar, bom de sentir, câmera exposta, vida explícita em seus mecanismos lúdicos. Você tinha estacionado e por isso veio. Rente à calçada, é exatamente isso o que fazemos, isso que é nosso casamento.

É um não deixar o outro estacionar. É isso que a gente faz um com o outro. Antes daquele dia da borboposa amarelo-receio, era sutil, empurrãozinho seu em mim, eu nas suas costas. Aí depois daquele dia em que o tempo parou, centrifugado, não ficou mais sutil. Ficou estrondoso, cada chacoalhão, um terremoto. Depois daquele encontro, tudo veio empurrando as caixas de pandora do nosso coração. Pixies, guerras, percussões, muitos plurais, filhos, casamentos, carros, capitais, coreias, tudo isso como expressão do indizível não dito pelo espelho. Experimentamos repetidas vezes formas de expressar e ter experiências desapegadas. E a cada vez, comentávamos. Ok foi perfeito. Perfeito de novo. Perfeito sempre.

Mas o amor é imperfeito. Cornucópia é o lugar do meu amor. Onde quer que você esteja, o que quer que você acabe fazendo, este é o voto, a cerimônia mais sincera, visceral, mamífera. Eu te tenho, eu te abraço, eu te recebo, montanha no lago, mesmo que essa beleza eu veja sozinha, quietinha, me testemunhando na rodovia escura, fugindo de uma onda que já arrebentou há séculos.

Só parei pra tirar uma cartolina da bolsa. Escrevi grande EU ESTOU BEM. JURO JURO. Eu não sei que cara, que boca se faz, pra sociedade, pros carros na rodovia, pra expressar de imediato que se está bem. Sorriso é difícil improvisar. Sai torto, sai maquiavélico, doente. Eu queria que você voltasse, me resgatasse, me abraçasse, me recebesse, montanha com caverna para revelar o lago. Mas você me tem quando eu acordo e sorrio torto mesmo, estranho mesmo. Você me tem quando me pergunta a pergunta certa antes de se mandar. “Você quer pedir alguma coisa?” Percebe como a pergunta é amor é ter, receber, abraçar, o próprio resgate que me resgatou na beira da estrada, ao avesso, por isso infinitamente maior.

“Você sabe, você percebe de alguma forma, não é possível, você tem quase 50 anos.” Essa foi a declaração de amor mais maluca e verdadeira. Tudo desavesso com a gente. O que está dentro está fora, sabe? Quando abandona, aí que ama demais. Quando não entende, aí que faz tudo tão claro de arder sem sol a noite que paralisou só porque nos encontramos na calçada. Como eu queria te encontrar na calçada sempre, eclipse todo dia, vagar de mãos dadas, essas mãos que são parte grande de um todo pequeno. E reverte.

Sempre reverte tudo com você. Vice-versa do tóxico, cruel, tão eu, tão “eu me engano”. Sempre destruindo meus castelos ingênuos por saber que eu não quero cultivar esses castelos. Levanta esse cartaz, caralho. Gente, eu estou com cara de desespero, chorando feito bebê abandonado, mas EU ESTOU BEM. JURO. Você não me deixa estacionar, seu chute me faz dar voltas em torno do planeta. Você me faz desfazer esse tempo mesquinho de relógio. Em outro texto eu tento contar os milagres, contar. Agora também sei que todas as coincidências entre nós podem ser resumidas com uma palavra, um instante de olhar, uma configuração de tripas que se sabem máquina do mamífero que criou a máquina à sua imagem e semelhança mecânica, organizada, narcísica.

Uma cornucópia de presentes, o presente que eu sempre pedi, desde o primeiro Natal iludido. O primeiro aniversário distraído. Eu pedi exatamente isso que você me dá. Esse milagre por todos os lados. Te ver, te sentir, te conhecer, morrer de saudade, morrer de raiva sem achar a porra do alvo dessa raiva. Com você a raiva vira mambo com babados fazendo baliza entre as peças de louça e as cuias laqueadas de uma cerimônia do chá. Eu quero ser simples, não sou simples. Me satisfaço em segredo em ser simples e ignoro que lhes pareça complexa. Sou básica explosão que só se dá diante de espectador.

Se alguém chegar e me vir assim agora, EU ESTOU BEM. E eu saber que estou bem resolve tudo. Tudo. Resolve tudo com você que não responde minhas mensagens. Tudo com você que está frágil e se preocupa comigo e com todos. Com você que é toda minha mamiferazinha, toda sentimentos de peixinhos pelo meu lago, fio de luz pisca-pisca do seu primeiro Natal. Debaixo da água, imagina. Imaginemos. Estamos bem.

Entendeu? O que você é pra mim? O que eu tento dizer quando viro metralhadora desvairada. Por que meus olhos viram lagos ao vento. Você sabe que a arte é a única forma de dizer esse tipo de coisa. Por isso nós inventamos. Variamos, fugimos, hesitamos, criamos aquilo que seja o que todo mundo não está fazendo e querendo e correndo atrás.

Abre esse presente: apego é medo de sentir, medo de perder. Vínculo é abrir o coração desse jeito aí que você abre o sorrisão.

Não consigo parar.

meu cachorro e notas subliminares

tenho sonhado frequentemente com cachorros de diferentes raças e não-raças.
em todos esses sonhos
o cachorro aparece como presença inequívoca, em parte como os cachorros se apresentam neste mundo: impossibilitados de serem corrompidos pela mente. e em parte seres de outro mundo, do mundo da ficção, da autocriação e auto-honra, da linguagem do Inconsciente (ou Portal Esquizo).

um cachorro é criado por mim e, no entanto, autônomo ao me amar incondicionalmente, e talvez mais significativo: assim fazendo, me faz entender por dentro o que é o amor.

sua garganta melhorou? começou a ler o livro que deixei sem você ver?

aceitação total acompanhada de discernimento, do saber + sentir = conhecer. um cachorro música que sempre que aparece, VEM. o que esses diferentes cães FAZEM nos sonhos? me abraçam com quatro patas possíveis, e do possível realizam o impossível. me olham, me percebem. constantemente fazem questão. da minha presença, do corpo que recebe, saboreia e se alegra no abraço.

minha vizinha grita na distância o mesmo grito harmônico que dei num dia passado, na rua. o cachorro se mistura a outros cães empolgados demais, barulhentos demais, gritaria de dias passados, e volta para me ver. VEM.

não desejo mais que isso. é total.
sou feliz porque o cachorro dos meus sonhos é real.

porque meu cão me visita em todo sonho que a ele se abre, não preciso ser atrevida além do que o momento pede, não me impaciento, não corro perigo. cão amuleto.

ele sabe. ele estava lá desde o meu início. física-ficticiamente presente ou inominável, anterior ao mundo verbal. cachorro cura.

Bailamos Sempre

“Notas demais”, disse Carmen Bárbara, citando Salieri. Checo se a porta do banheiro está trancada, com isso, lançando mais uma nota. Exagero com a validação de uma mulher para variar um tanto, um perímetro que basta. Este exagero agora basta. Não é um vício, é dharma.

“Pode exagerar à vontade”, quando traduzo o que você me diz, vejo que pensamos igual. Me traduzo também, mais uma nota excessiva. ‘À vontade’ não significa ‘por causa da minha vontade’, mas ‘com esse entusiasmo que checa se o sono está vindo ou barrado pela dor de barriga que não dói’.

A dor de barriga que não dói ameaça; espada. Vira pânico, vira medo vira-tripa, vira bad trip. Quer caber nessa área de lagoa muita coisa. A dor de barriga que não dói e não é engraçada carrega um ventre que tem as dimensões vastas da Terra, que carrega o monte das oliveiras, medo, carrega também paz e samba e papel higiênico à disposição e monges de cabeça raspada brincando de se machucar na escada rolante com suas namoradas molecas ao som do amuo de criança que virou sample. Não dói mas ameaça estourar pelo chão mais que sujo menos que podre do banheiro.

E estoura com aquela nota a mais que chacoalha o ser empanturrado. Vincule-se a um animal, a uma coisa ou a um animal que esteja humano, pede o corpo, tarde demais. A nota a mais que empurrou irreversivelmente a barragem de carne, tecidos, pele é formada por milhares de frames (sim, está no dicionário com a definição errada do pai dos burros, mãe da desconfiança, mas com paciência você logo vai entender que frames são esses) do filme Trainspotting, ói ói o trem que vem vindo de trás dos montes das oliveiras.

Desfeita a barragem, vem não só o sono. Vem à frente toda a água, falando que também é Terra e que realiza a expansão do olhar. Ou dos limites da paisagem, como queira.

Com licença, Guilherme Arantes, a Água passou e nos levou junto.

Quer um final sutil? Finja que o meio é o final. A mente sempre vê assim mesmo.

a capa mole do dao

bati o olho muito de resvalo na foto. mas manuseei bastante antes. estava caída, não uso porta-retratos. peguei, olho só a ponto de ver qual era, corrida areia do dia, fiquei dobrando pra trás pra desfazer o vão que a tornava côncava e a fazia cair com os rostinhos do retrato pra baixo. pro não poderem ser vistos por ninguém.

fiz. agora vão parar de pé os rostos. os rostos de uma foto – eu ainda estava nessa, inconsciência ou lapsos de falta de atenção pra render e não rendar o dia. apoiei os bustos coloridos como estátuas na grécia antiga, no agora daquela grécia, sem ainda saber, mas já sentindo indo sentir já, os amarelos que vi nascerem, os azuis que peguei nas mãos, de pele, de cabelo, de brilho que me toca. encostei de volta nas lombadas dos livros, a foto de papel e revelação peculiar digital, e fui cuidar da correria inconsistente em que já estava. fiz.

e fui. engano meu. fiquei presa, cativa cativada? uma fração de segundo de nem olhar bem praquilo tudo, condensado em Imagem, e por isso mesmo, por não olhar nem bem e por ser Imagem, a foto-grafia me puxou com seis braços (eram 3 retratos automáticos de 2 pessoas) para o inominável daqueles olhinhos doces, libidinosos (um dos instantâneos foi num beijo) de arte e rebeldias clandestinas, namorados dentro da cabine fechada por cortina empoeirada, sequência de 3 pares deles mesmos.

aquilo revirando em mim só o agudo, só o que não falei ainda, só o sem título. som de teclado nos envolve. sou a produtora musical dessa foto e isso não é pouco. nem a fotógrafa fui, foi a Máquina. é a capa de um livro que quero engolir como eu toda sendo a boca do urutau, monstra bocuda que sou quando amo assim, pra todo lado.

o maior grito que a foto deu dentro foi A fragilidade dos seres que se aproximaram de mim nesta vida é um abraço que salva alma, lava o corpo cansado, te desce ao pânico por meio do fio da confiança. que cura, que te sobe de volta pra alegria que beijo até o fim e sei que merecemos.

agora, 24h depois, caminho até a estante e tenho coragem de ver a foto. não sei se não tem nada disso sobre o papel brilhante e com a definição horrenda das Máquinas revoltadas com a desimportância da luz-e-sombra da revelação digital, recriando o impressionismo. não sei se não tem nada na imagem, se são 2 e não 3 retratos, de 1 e não 2 almas. isso não sei mesmo. sei-sentindo que tudo ali me diz.
.
.

reconstituir a lágrima

parei na lanchonete e a moça do caixa transpareceu seu pesar quando comentei sobre a inflação. a carestia, como se dizia antigamente, hoje nos penetra disfarçada de eucaristia. por isso silenciamos diante do salgado a quase 10 reais, que não ia, entretanto, me descer. nem empurrado pelas lágrimas que viriam em ondas a cada renovada compreensão da malvadeza das feikinils.

eu não podia permanecer ali ao balcão. as moças que me serviam estavam graves, a esperança fora delas, em algum lugar de desengano. então não seria honesto deixar verem minhas lágrimas vindo em ondas. quando a ficha foi caindo, maior que nós, deixando o salgado e suco, por truque, se transmutarem em corpo seco e sangue açucarado.

os incansáveis produtores de mentiras produtoras de pavor sabem. xingamentos e tiros deles são tão reais para quem não teve oportunidade de educação quanto me são reais 1. saber que se eu pular de um alto andar não vou sobreviver e 2. saber que não vou pular. quem não teve oportunidade de pão que não fosse farinha empapada no café pode pular. seu sangue misturado ao café. vítimas no sentido forte do termo pulam. não tem como eu expor essas moças graves em suas inteligências a essas ondas que vêm derramando quando eu percebo.

a ardilosa fabricação de pavor em quem não tem o direito de duvidar da realidade. a inocência de quem *encaminha* o motivo do seu medo, do seu sono devassado, da sua cama corrompida todo dia, para dizer Olhe, claro como a luz do sol ao meio-dia, é preciso ter pavor. é preciso correr e pisotear os outros. é preciso não pausar. não pensar. só acreditar. e ser vítima. no intervalo entre uma onda e a próxima, engulo um pedaço de verdade. pra poder abraçar minha mãe.

Pode dormir tranquilo, garoto

– Não somos a Venezuela. Nem pior, nem melhor.
– Tomara mesmo.

– Quer ajuda pra levar [as compras] até lá?
– Não precisa, muito obrigada.
– Eu levo até lá. Tá chuviscando, tá pesado.
– Até lá? Não estou de carro.
– Ah..
– Vou tentar pôr tudo nessa caixa.. A mochila ajuda também.
– Toma, apoia a mochila aqui no carrinho.
– Não precisa– Ah, não é que facilita mesmo!
[Dá uma piscadela esperta para o Garoto quieto com a mente na Venezuela. Quieto ainda, rondando aparentemente imóvel.]
– Sempre gostei de mochila, mas tenho trauma. Corria pra pegar o ônibus e arrebentava.
– Estava muito pesada?
– É, cheia de carne que deixavam a gente levar. Naquela época, deixavam. [Tom de saudade de um tempo próximo.]
– Ah, então você vai votar no Lula. [Sorrio.]
– De jeito nenhum. É pecado votar nele.
– Ah, foi seu pastor que disse?
– [rindo] Não. Não dá pra votar nele, não.

– [sorrindo] Me dê um argumento a favor de Bolsonaro ou um contra Lula. Respondo em 2 minutos e conversamos outro dia.
– Numa cidade com 2 mil habitantes, Lula teve 4 mil votos. A urna só deixa votar nele, presidiários votam nele.
– Você viu isso no Youtube?
– Na televisão! SBT, Globo, Record.
– É mentira.
– Mas na segurança, Bolsonaro é bom.
– Ele faz arminha, né. Adora armas.
– [Faz que sim.] Só quem tem condições tem arma. Tem que ter condições psicológicas, habilidade.
– Quem é que morre com tanta arma por aí?
– Tá tudo horrível na Venezuela. Vejo na TV.
– As chances do Brasil virar uma Venezuela são as mesmas de virar um Japão.
– …
– O Brasil é enorme, tem história, cultura, política e recursos diferentes.
– A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo e olha como está. – É o garoto quieto rondando a conversa. Pairando pensamentos.
– Não estamos mais próximos da Venezuela com Bolsonaro? Você vê quanta gente pedindo e vivendo na rua? Correndo atrás de osso.
– Sim, sim.
– Eu ri muito com o que umas meninas postaram no status do zap. O Lula combateu tanto a corrupção que foi preso. [Ainda ri]
– Quem prendeu Lula? Por que ele está livre?
– Presidiário, não dá não.
– Foi o Moro, né. Você sabe quem é Moro.
Olhos nos olhos… Tá chuviscando. Tá tarde. A conversa finca o pé, não vai pra nenhum lugar?
– O Moro não foi ministro de Bolsonaro? Por que prendeu Lula?
– É 22! Hahaha. É 2 e 2.
– Eu votei no Bolsonaro no primeiro turno. No segundo voto no Lula. – É o garoto estoico, sereno compenetrado que passa e volta ao posto diante dos carrinhos do mercado.
– Que bom, dorme sossegado hoje. Sem o pavor que inventaram. Escuta o que cada candidato fala e sempre falou. Lula é amigo de Maduro porque Lula é amigo de tantos. Escolheram o país que criasse pavor na gente. Por que não escolheram Espanha? Não vamos virar a Venezuela.
– Tomara mesmo.
– É 22. Lula não dá.
– Um filho do Bolsonaro não comprou uma mansão de 6 milhões?
– Isso é verdade mesmo, eu vi. Isso é.
– Como pode? Assalariado. Impossível sem roubar.
– É, a gente guarda um pouco no final do mês. Não tem como comprar nada. [Baixa a cabeça, sentindo o dinheiro na mão, a chuvinha fina caindo na mão. Tá pesado.] É verdade isso aí, comprou mesmo uma mansão.
– Até mais, vou correr com a minha caixa e mochila. Muito obrigada. Boa noite.
– Obrigada. Bom descanso.
– Heh. Descanso, não. Eu volto. Até dia 30 eu viro teu voto.
– Hahaha.

Sigo marchando pra casa, ecoando o que o nordestino disse sobre baiano ser preguiçoso, que editei do diálogo. Sou neta de baiana. Sou Carmem. Olho nos olhos. Como meu presidente, penso com o coração. Sem eu esperar, tudo ficou leve.

Não se vira voto de quem não está curioso pra entender. Há uma pulga atrás da orelha do eleitor que sempre anulou ou pagou multa pra não se responsabilizar. Uma pulga de 500 anos pesa.

Interlocutores que não falam de pátria acima de nada nem de meritocracia nem que na ditadura era melhor estão abertos para entender algo no caos.

Chego em casa, filho preocupado. Você demorou. Mãe, tudo bem? Sim, eu tava virando voto. Não é perigoso? Tem gente que dá tiro por isso. Não, fica tranquilo, eu vou no sapatinho, só se a pessoa estiver louca pra me ouvir. E a ideia de mais 4 anos com os canalhas, a gente se muda pro Uruguai. E a filha mais nova, Por que Uruguai?
[Editei a parte da pedofilia e do canibalismo também.]